Crónica de Alice Vieira | A minha tia Carlota

Alice Vieira

 

A minha tia Carlota
Por Alice Vieira

 

A minha tia Carlota era uma mulher extraordinária.

Mas sempre muito séria, nunca me lembro de alguma vez a ter visto rir, nem sequer sorrir.

E sempre muito rigorosa. Uma grande professora primária, mas que exigia muito de todos os alunos.

Com uma enorme força de vontade, aquilo que ela queria, ela conseguia.

Devido a problemas familiares (mas que não tinham nada a ver com ela) conheceu a família paterna muito tarde. Desculpas destes e daqueles e tudo acabou por se recompor.

Um dia apaixonou-se por um sobrinho, muito mais novo do que ela—e que ela nunca tinha visto até então. Tiveram de pedir autorização ao Vaticano — e lá casaram. Foi paixão até à morte dela — que por acaso até era um bocado feiosa.

Como ela já não era muito nova, todos pensávamos que não teria filhos, mas teve — uma filha, muito inteligente: aos 8 meses, se lhe perguntássemos “o que é o Salazar?”, ela respondia logo “é um grande pirata”. (E, como se prova, muito bem educada)

A minha tia Carlota nunca estava parada. Tinha sempre coisas para fazer, mesmo (ou sobretudo) depois de reformada.

Nunca esteve doente. Nem me lembro de alguma vez ter tido uma leve constipação —embora se vacinasse contra tudo.

Já tinha muita idade quando caiu à cama — e já não se levantou. Não tinha nenhuma doença, só estava muito velha.

A família esteve sempre ao seu lado, fazendo-lhe festas nas mãos e falando sempre com ela.

“A mãe está bem?” — e ela, sempre de olhos fechados, acenava com a cabeça e sorria.

“A tia quer alguma coisa?” — e ela acenava com a cabeça a dizer que não e sorria.

Até que houve um dia em que ela estava mesmo a morrer: já não sorria, já não ouvia

Todos ao pé da cama, para a acompanharem nos seus últimos momentos

Até que a filha se lembrou de ainda lhe perguntar:

“Como é que está?”

E, de repente, ela abre muito os olhos e grita: “parece que o mundo inteiro se uniu pra me tramar” — e zás, morre.

Quando eu contei isto ao Rui Veloso, ele só dizia, “não acredito, não pode ser, tu não me digas nada”

Mas foi assim. Assim mesmo. E tenho testemunhas.

 

Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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One Thought to “Crónica de Alice Vieira | A minha tia Carlota”

  1. Ahah…adorei conhecer um pouco dessa senhora Carlota, e sua vida!

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